GERENCIAMENTO DO RISCO ODONTOLÓGICO-LEGAL: MECANISMOS PARA PREVENÇÃO DE RESPONSABILIDADES DO CIRURGIÃO DENTISTA
Ref. Responsabilidade Civil.
Landoaldo Falcão de Sousa Neto*
DESENVOLVIMENTO
É fato que a relação cirurgião dentista-paciente sofreu profunda transformação, ou mesmo uma literal ressignificação nas últimas duas décadas. Os fatores são de conhecimento geral, mas que importa trazê-los à tona. A atividade no setor de saúde comumente era tratada como atípica, em que para a responsabilização era aferido apenas a atuação valorativa (técnica) do profissional. Sendo, portanto, um relacionamento em que o profissional se encontrava em um pedestal (modelo paternalista), bem de longe do propugnado nos tempos atuais acerca da relação compartilhada e resultante de um diálogo (modelo compartilhado). Assim, houve mudanças profundas na sociedade brasileira, a partir, inclusive, da Constituição Federal de 1988. Após a edição da Carta Magna, e a consolidação da intervenção do Estado na ordem econômica e social (saúde, educação, politicas sociais, etc), foi sendo criadas legislações protetivas. Com isso, foi criado o Código de Defesa do Consumidor, que consideramos o marco para ressignificação da contratualização de serviços em saúde. Por esta legislação foi nivelado a patamar de consumidor a figura do paciente, estando em posição similar de direitos e deveres a qualquer consumidor comum.
Esta configuração sob a ótica consumerista gerou sérios (e preocupantes) desdobramentos na prestação de serviços no setor de saúde, notadamente na área médica e odontológica. Sendo áreas que demandam conhecimentos específicos, atuação valorativa do profissional, fatores externos, reações biológicas e físicas e inúmeras peculiaridades, o nivelamento por si só do paciente a figura de consumidor ocasionou desgaste inerente a relação. É consabido que o Código de Defesa do Consumidor preconiza a observância e o respeito fundamental a vulnerabilidade do consumidor, impondo ao fornecedor (cirurgião dentista ou clínica odontológica) a reverência a informação como pressuposto inafastavel, sem falar de outros direitos decorrentes. Em decorrência da legislação consumerista foram criados órgãos protetivos, com atuação especializada, tais como: Procon, Promotoria do Consumidor, etc. De fato, houve uma inequívoca intervenção legal na relação entre o Cirurgião Dentista e o Paciente.
Do mesmo modo, e igualmente preocupante, se dá o aumento exponencial de processos judiciais e administrativos que tem como origem a má prática odontológica (erro odontológico). A judicialização da saúde é um fato indiscutível na sociedade brasileira (que já é uma das mais judicializadas do mundo), se constata aumento vertiginoso no número de processos julgados no âmbito dos tribunais superiores que tem como mote a matéria em debate, e esse fato é apenas reflexo do crescimento das discussões jurídicas que ocorrem no primeiro grau.
Ademais, temos como fator, também, as evoluções das técnicas e especialidades odontológicas, aliado as relações ágeis, complexas e modernas contemporâneas que implicam num tráfego de informações, trocas e ambições constantes, terminando por resultar num nível extremado de exigência. Aliás, acrescente-se aí o aumento progressivo de conscientização da população sobre os seus direitos, bem como a massificação do consumo, em que a odontologia atual preconiza o volume de atendimentos, desprezando, via de consequência, a personalização do tratamento e gerando o (tão falado) desgaste relacional. De tudo isso, temos um novo padrão social e de comportamento. Para a odontologia, o conceito de saúde atual, e que o mercado busca de maneira incessante, é o senso de “Autoestima” para o bem-estar físico, psíquico e social. E este advém no sorriso perante o espelho, com a dentição saudável e esteticamente apresentável, sendo elemento fundamental para as “exigências” cotidianas.
Dita introdução veio de modo a subsidiar a descrição dos fatores preponderantes a ressignificação da relação cirurgião dentista-paciente, e ora ensejadora da judicialização e do desgaste relacional. Ei-los:
a) Edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90);
b) Criação de instituições protetivas (Procon, Promotoria do Consumidor, etc);
c) Massificação do consumo e oferta aleatória de serviços (mercantilização);
d) Alteração do conceito de saúde;
e) Complexidade de atuação e segmentação da atividade odontológica;
f) Má formação (ou ausência) da Documentação Odontológica-legal e do contrato;
g) Descumprimento as normas éticas e a dispositivo literal de Lei;
h) Concorrência extrema.
De toda a introdução, e dos fatores preponderantes a judicialização e ao desgaste relacional do Cirurgião Dentista-Paciente, temos que o Profissional esteja sujeito –ainda mais atualmente- a sofrer responsabilização por seus atos e omissões, seja através de intimidações, denúncias, reclamações, processos éticos e judiciais, etc.
Pelos fatores acima elencados, o Cirurgião Dentista está apto a praticar atos que resultem em responsabilidade, que poderá ser em 03 (três) esferas, a saber:
O Cirurgião Dentista poderá ser acionado em qualquer das esferas isoladamente, ou mesmo, conjuntamente em duas ou nas três, possuindo cada qual uma dinâmica própria, com características diferentes e um enfoque particular. Assim, o profissional deve encarar de maneira diferenciada o processo em cada esfera. O que ocorre comumente é a opção pelo Paciente da via ética junto ao Conselho Regional, de modo a subsidiar possível ingresso na esfera cível, ora mais atrativa por visar pretensão de natureza reparatória (condenação em valores).
A responsabilidade profissional do Cirurgião Dentista não está adstrita simplesmente pelo seu atuar técnico, tendo em vista os princípios consumeristas e os bioéticos. Esta responsabilidade consiste em lesões a bens jurídicos decorrentes do exercício da odontologia. Estes poderão estar travestidos em erros técnicos, inobservância dos deveres éticos (Deontológicos), ausência de informação adequada ou uma violação a dispositivo do CDC ou de Lei.
Com efeito, infere-se efeitos imediatos das transformações legais contemporâneas perante a responsabilização profissional, tais como:
a) Prazos de Prescrição e Decadência diferenciados pelo CDC;
b) Facilitação Desconsideração da Personalidade Jurídica;
c) Regras rígidas para a Oferta e Limitações e rigidez para a Publicidade;
d) Inversão do ônus da prova;
e) Universalização da Responsabilidade (Solidariedade);
f) Limitações a cobrança de dívidas, as práticas, exonerações e estipulações contratuais (proteção contratual maximizada em favor do Paciente);
g) Inversão de responsabilidade, a regra é a responsabilidade objetiva (prescinde de culpa), com exceção do profissional liberal que permanecerá subjetiva.
Consoante a leitura aduzida, temos que a odontologia é uma atividade que possui em sua natureza riscos e imprevisibilidades que afetam a saúde do Paciente, no qual demanda um controle (ou minimização) via gerenciamento dos riscos, com a adoção de medidas preventivas. Por certo, considerando os fatores e os efeitos legais hodiernos da ressignificação da relação Cirurgião Dentista-Paciente, entrevemos alguns aspectos e medidas que, observadas pelo Profissional ou Clínica, poderão importar em controle do risco legal-odontológico. Ei-las:
1) Formular contrato por escrito – Delimitará o objeto (e forma de execução) do contrato e consequentemente a responsabilidade do Profissional ou Clínica;
2) Respeitar as regras éticas (deontológicas) – Entender e conhecer as regras deontológicas (código de ética odontológica, Resoluções, etc) é o ponto de partida para uma relação saudável com o Paciente, e de maneira inversa será a base para possíveis conflitos em razão do descumprimento de seus preceitos;
3) Formar e preencher adequadamente a Documentação Odontológica-legal –É pressuposto imprescindível ao Profissional, sendo importante a transcrição de todas as fases/intercorrências do tratamento, aliado ao preenchimento adequado do prontuário. Além de obrigatória sua formação, evita, protege e delimita a responsabilidade do profissional diante do tratamento. Constitui-se como registro fiel dos fatos desenvolvidos, sendo um mecanismo de defesa válido;
4) Guarda e disponibilização da Documentação Odontológica-legal – A guarda (adequada) do prontuário é fundamental. O Paciente sempre faz jus a uma cópia da Documentação Odontológica-legal mediante recibo;
5) Treinamentos – O treinamento (sobre a legislação odontológica e consumerista) da equipe de colaboradores, secretárias, etc, é peça necessária ao controle e minimização do risco legal-odontológico;
6) Diagnóstico de Riscos Odontológico-Legais – É uma medida de colheita de elementos e de precaução por sua atuação, devendo ser específica para a realidade de cada consultório ou clínica. Deve ser feito uma averiguação dos riscos Odontológico-legais a que se está exposto de acordo com a legislação, objetivando corrigir condutas, rotinas, etc, aprimorando-os ou implantando estratégias;
7) Gerenciamento do Odontológico-Legal – Constitui o controle –ou minimização- de riscos. São adequações de práticas e implementação de técnicas e dinâmicas amparadas na Lei e normas específicas da matéria, de acordo com o caso em concreto do consultório ou clínica. Poderá se dar por duas vias: Gerenciamento da Documentação Odontológica-Legal do Paciente; e Orientação e Treinamento para o Cirurgião Dentista e/ou equipe de colaboradores;
Tais ferramentas são importantes para uma realidade não pacifica que se encontra atualmente a relação Cirurgião Dentista-Paciente. Estas visam equilibrar, pacificar e trazer segurança, qualidade e tranquilidade ao ambiente de prestação de serviços odontológicos.
Inobstante as ferramentas suscitadas, a informação se mantém como gênese de tudo que orbita o tema, devendo ser sempre observado a máxima de que “paciente informado é paciente tranquilo e não questionador e litigante”.
Entrementes, mesmo a despeito do ambiente de litigio atual, em que o tema responsabilidade profissional é recorrente, o Cirurgião Dentista há de ter consciência de que possui excludentes de responsabilidade que poderão incidir ao seus casos controvertidos, no que destacamos as mais presentes: culpa exclusiva e/ou concorrente do Paciente; culpa de terceiro; inexistência de dano; iatrogenia (Lesões decorrente de Falhas no Comportamento no Exercício Profissional); resultado incontrolável; acidente imprevisível (caso fortuito ou força maior). Na eventual demonstração de alguma das hipóteses retro citadas, o profissional restará isento de qualquer imputação de responsabilidade.
Portanto, expusemos, sob o viés da responsabilidade, o cenário atual de desgaste na relação Cirurgião Dentista-Paciente, razão pela qual destacamos as cautelas e o emprego de mecanismos mínimos de controle (gerenciamento) para um atuar adequado e seguro do profissional. Ademais, o Cirurgião Dentista não pode, e nem deve reagir com medo ou receio (muito menos se submeter) diante de questionamento ou intimidação de paciente, e sim ter cautela diante da controvérsia acerca do tratamento, buscando ajuda de profissional especializado, para assim, produzir elementos à defesa técnica, como também evitar criar prova contra si, pois a maneira de se lidar será diferenciada para cada esfera (cível, ética, criminal).
*Landoaldo Falcão de Sousa Neto é advogado do Conselho Regional de Odontologia da Paraíba e sócio do escritório Falcão de Sousa Advocacia com atuação especializada no direito médico, odontológico e da saúde, membro da Sociedade Brasileira de Bioética, Secretario Geral da Comissão de Direito Médico-Hospitalar e Planos de Saúde da OAB-PB- landoaldo@falcaodesousa.com.br