O Brasil deve criar uma jurisprudência tributária mais flexível para lidar com o cenário de crise provocado pelo novo coronavírus. Essa foi a tese defendida por especialistas em debate online na TV ConJur.
A discussão ocorreu nesta terça-feira (19/5), no seminário virtual "Saída de Emergência", que teve como tema "Os Crimes Tributários em Tempos de Calamidade e Crise Econômica".
O programa foi mediado por Pierpaolo Cruz Bottini, professor livre-docente de Direito Penal da USP e colunista da ConJur. Contou ainda com a participação do juiz federal Marcelo Costenaro Cavali; a professora Heloisa Estellita, da Escola de Direito da FGV; e o professor da USP Heleno Torres.
O pano de fundo foi a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que equipara o não pagamento do ICMS próprio declarado ao crime de apropriação indébita. Com isso, a corte autorizou o processamento de inúmeros contribuintes.
Considerando o cenário que já é dramático por conta do coronavírus, o aumento no número de processos poderia agravar ainda mais a situação dos contribuintes que enfrentam dificuldades para cumprir suas obrigações.
Nova jurisprudência
Para Heleno, é necessário fazer uma separação entre três momentos distintos: aquele que é anterior à crise; o que irá se concretizar no período de calamidade; e o que será iniciado depois que os impactos da epidemia passarem. A decisão do STF, segundo ele, está localizada no primeiro momento, e, por isso, deve ser entendida com cuidado.
"É impossível encontrar um ambiente fático como esse. De repente, toda a situação de consumo e serviços foi obrigada a parar em todo o mundo. Então a jurisprudência que existe está fadada ao insucesso. Temos que criar uma nova jurisprudência que lide com essa questão da pandemia, por conta das circunstâncias e pela ausência de condutas que poderiam ser consideradas dolosas", afirma.
Cavali também argumenta que a decisão do Supremo foi tomada dentro de um contexto de normalidade que já não existe. Nas novas circunstâncias, diz, os elementos necessários para comprovar a apropriação indevida terão de ser apurados de forma mais rigorosa, levando em consideração os efeitos danosos da Covid-19.
"No âmbito da crise de 2008, que nos atingiu de um jeito muito menor que na crise atual, a jurisprudência admitiu o afastamento da culpabilidade levando em consideração, por exemplo, ações de execução movidas contra o contribuinte, ações trabalhistas, demissões em massa e a necessidade de tomadas de empréstimos", explica.
Para o juiz federal, o cenário atual permite que medidas semelhantes sejam adotadas pelo judiciário no momento de decidir se o contribuinte deve ou não ser punido por não cumprir com suas obrigações.
"Tudo isso pode ser levado em consideração para afastar a punibilidade por inexigibilidade de conduta adversa. Em momentos de crise deve haver uma maior flexibilização."
Os especialistas defenderam, no entanto, que no caso de crimes envolvendo fraude, não há justificativa para o não pagamento de tributos. Sendo assim, não há motivo para flexibilizar eventuais punições.
Não persecução
Os participantes também discutiram a possibilidade de acordos de não persecução penal serem celebrados como alternativa aos contribuintes impactados pela crise.
O instituto foi inserido no artigo 28-A do Código de Processo Penal pela "lei anticrime" (Lei 13.964/19) e vem na perspectiva de ampliação do chamado espaço de consenso ou justiça negociada no processo penal.
Segundo o dispositivo, "não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público Poderá propor acordo de não persecução penal".
O artigo, entretanto, estabelece em seu inciso 1º que deve haver reparação do dano causado ou restituição à vítima, "exceto na impossibilidade de fazê-lo".
Para Cavali, é justamente a necessidade de reparação do dano que levanta dificuldades quanto à aplicação dos acordos de não persecução no caso de crimes tributários
"Se o agente entender que a reparação do dano significa pagar todo o tributo devido, o acordo é inútil, porque pelo simples pagamento dos valores devidos já temos a possibilidade de extinção total da punibilidade", afirma.
Estellita discorda. Para ela, o total a ser pago em um acordo como forma de reparação do dano é inferior ao que seria exigido para extinguir a punibilidade.
"A reparação do dano como condição do acordo de não persecução não exige satisfação integral do crédito tributário. Isso significa que reparar o dano para o Fisco é pagar o tributo atualizado, com juros. Esse valor pode ser 150% menor do que aquele necessário para extinguir a punibilidade pelo pagamento", afirma.
Clique aqui ou assista abaixo a íntegra do seminário: