In dubio pro societate. A balança em prol de uma difusa coletividade pesou em desfavor de Roberto Caldas, advogado e ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Foi em novembro de 2018, quando o juiz de uma ação penal ? na qual Caldas figura como réu ? indeferiu o pedido de rejeição da denúncia. As acusações: ameaça contra a ex-companheira (artigo 147 do Código Penal); vias de fato (artigo 21 da Lei das Contravenções Penais) ? contra a ex-companheira e uma ex-funcionária, no âmbito de violência doméstica (Lei Maria da Penha); tentativa de constrangimento ilegal (artigo 146 do Código Penal).
"A dúvida recai em favor da acusação e da sociedade e não do réu, pois, nos casos em que envolve violência doméstica, que na maioria das vezes ocorrem longe dos olhos de testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância, sendo apta, inclusive, para sustentar condenação", explicou-se o juiz, para quem apenas os indícios de autoria foram suficientes, dispensando-se a materialidade delitiva.
Mas a balança contra Caldas já havia sido esmurrada havia seis meses. Bastaram para tanto capas de revista e reportagens em telejornais. Afinal, sua ex-esposa, Michella Marys Santana Pereira, viera a público acusar o defensor de direitos humanos.
Disse que, ao longo de uma década, Caldas se comportou violentamente: de xingamentos a agressões físicas. A gota d'água teria sido um entrevero no fim de 2017, quando o advogado teria ameaçado pegar uma faca para matá-la.
Quando o carteiro morde o cachorro ? diz-se à boca pequena nas redações ?, a audiência é certa, independentemente de se encontrar um cão ferido.
As acusações de Michella resultaram em inquérito ? feito na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, em Brasília ? que deu origem à ação penal.
Na época, Caldas afastou-se da CDHI para poder se defender, paralisando sua vida profissional por quase dois anos. Também vendeu todas as cotas do seu escritório de advocacia.
Durante pouco mais de 1 hora, o advogado narrou sua versão dos fatos à ConJur e deu detalhes do tortuoso episódio que interrompeu o melhor momento de sua carreira. É hora de voltar à cena e enfrentar o fim da batalha judicial com a ex-esposa ? e a sociedade por trás dela. A sentença deve ser proferida em junho deste ano.
"Tentei me defender, na época. Disse que estava sendo chantageado e que se não dividisse meu patrimônio ao meio e desse mais R$ 12 milhões, seria processado. Ela queria R$ 1 milhão por ano de relacionamento. Também concedi algumas entrevistas, mas as pessoas já estavam com o juízo de valor formado. Afinal, eram três mulheres supostas vítimas dizendo que tinham outras cinco para testemunhar que, entre outras coisas, eu teria ameaçado a minha ex-mulher de morte", conta.
Desde a época do escândalo midiático, Caldas sempre negou ter praticado agressões físicas, mas admitiu as ofensas verbais.
Ele também explica que um das ex-funcionárias iria confirmar a suposta ameaça de morte. Para tanto, teria sido convencida pela ex-esposa sob o argumento de que ele usaria de seu poder econômico para conseguir ficar com os filhos.
Assim, a ex-funcionária concordou em assinar um documento com o falso relato, mas desde que ele só fosse usado caso Caldas pleiteasse judicialmente a guarda dos filhos. "Mas ela se arrependeu ao ver seu nome ser citado em uma matéria do "Jornal Nacional", da TV Globo.
"Ela decidiu então revelar ao Ministério Público que aquilo era mentira", afirma Caldas. Em audiência, assim, a ex-funcionária acabou por se retratar, embora tenha sido pressionada pela promotoria a não o fazer.
Segundo Caldas, sua ex-esposa fez 11 acusações contra ele, que resultaram em duas ações penais. Na principal delas, sete acusações foram arquivadas por completo descabimento e apenas quatro chegaram a fazer parte da denúncia, cujo julgamento está pendente. Além disso, o próprio Ministério Público requereu em suas alegações finais a absolvição de Caldas por duas das quatro acusações restantes.
Big Brother e materialidade
Nessa batalha judicial, um dos pontos que chamam a atenção é a quantidade de câmeras espalhadas pela casa em que Caldas vivia com Michella. Ele afirma que eram 30 equipamentos espalhados pelo imóvel, mas nenhuma imagem de agressão foi anexada aos autos.
Michella gravou Roberto Caldas por seis anos. Segundo depoimento do técnico responsável pela instalação do sistema de câmeras, as filmagens eram suspensas sempre que o advogado viajava; além disso, Michella apagava o HD periodicamente.
Apesar de não ter nenhum vídeo como prova, Michella forneceu áudios que demonstrariam as supostas agressões. Segundo Caldas, apesar de reiterados pedidos, os áudios na íntegra nunca foram anexados ao processo. O advogado admite que "houve extrapolações verbais", mas nega agressões e argumenta que as gravações apresentadas foram editados.
Michella também não passou por nenhum exame de corpo de delito. Apresentou uma fotografia com um machucado no pé, mas sua versão acabou desmentida por outras imagens, que mostraram que a lesão teria acontecido durante uma viagem dela com os filhos em Orlando, na Flórida.
Detalhes dos processos
Na principal ação penal contra Caldas, a acusação referente a crime de injúria foi arquivada, por transcurso do prazo decadencial para oferecimento de queixa-crime. A extinção da punibilidade foi inclusive pedida pelo Ministério Público.
Uma segunda ação penal dizia respeito a uma medida protetiva de urgência requerida pela ex-companheira dentro da ação principal, a qual foi apresentada por três vezes e somente aceita na última, mas foi revogada por meio de Habeas Corpus do TJ-DFT, que entendeu não ter havido indício de que Caldas tenha cometido o delito de perturbação da tranquilidade.
Contra Caldas ainda foram oferecidas acusações de assédio sexual, por duas ex-empregadas. Duas na área penal ? arquivadas definitivamente, por transcurso do prazo entre a data dos fatos e a representação das vítimas à Polícia ? e uma na área trabalhista, cuja sentença de mérito foi favorável ao advogado, mas o julgamento do recurso está pendente.
Passado controverso
Quando o casal se conheceu, Michella revelou que tinha sido vítima de violência doméstica no passado. Segundo o advogado, essa informação pontuou alguns aspectos de seu relacionamento com a ex-mulher. "Ela sempre foi uma pessoa muito difícil e eu sempre acreditei que isso era em parte por conta de traumas do passado", explica.
O processo movido por Michella contra Caldas revolveu o episódio de violência doméstica de seu primeiro casamento. Um caso ? apesar de menos midiático ? tão controverso quanto o envolvendo o advogado.
O relatado no processo com o primeiro companheiro é que Michella segurava sua filha no colo ? um bebê com pouco mais de um mês de vida ? quando o seu primeiro marido jogou uma panela de água quente em sua direção. O ato teria gerado queimaduras na criança e não atingiu Michella porque ela estaria usando uma roupa de napa.
Um laudo assinado pelos peritos Celso Nenevê e Mauro Yared, no entanto, aponta que quem tem lesões decorrentes de ex-queimaduras é Claudiano Pessoa de Lima, o primeiro marido de Michella. As informações constam de processos que tramitaram na 4ª Vara Criminal de Maceió.
Segundo Caldas, existem fotos que mostram as marcas no tronco do homem e uma área preservada que seria supostamente a região em que a criança estava encostada.
O julgamento das quatro acusações contra Caldas deve acontecer logo, mas, independentemente do resultado, o caso já o deixou marcado por feridas que nem sempre se cicatrizam facilmente. Ter a intimidade exposta ao escrutínio público pode ser algo devastador. A balança supostamente pró-sociedade pode tardar a reequilibrar-se.